O cérebro é como um computador que se reorganiza em resposta ao ambiente (foto: iStockphoto).
Será possível aplicar os avanços da neurociência para melhorar o sistema educacional? Em sua coluna, Roberto Lent discute essa questão a partir de resultados recentes que mostraram a existência de mecanismos cerebrais envolvidos com a aprendizagem.
Essa concepção conservadora do cérebro como um órgão rígido, pré-formado sob estrita ordenação genética, agride o senso comum,
mas possivelmente se cristalizou no século 20 pela grande influência de
Santiago Ramón y Cajal (1832-1934), pesquisador espanhol que
estabeleceu a doutrina do neurônio como unidade básica do sistema nervoso.
Cajal analisou ao microscópio – e revelou ao mundo por meio de
belíssimas ilustrações a bico de pena que ele mesmo fazia –¬ milhares de
neurônios de variadas formas, e centenas de circuitos neurais de
diferentes composições, em cérebros de diversas espécies de animais, inclusive humanos.
Dotado de forte espírito imaginativo, Cajal viu além das formas que
desenhou, propondo mecanismos e funções para os neurônios e seus
circuitos. Apesar disso, via formas, mapas, circuitos. Talvez por essa
razão, opinou sempre que o sistema nervoso adulto seria rígido e
invariante. Um paradoxo, tendo em vista a grande flexibilidade comportamental e cognitiva de que somos todos dotados.
Novas técnicas revelaram o funcionamento dinâmico dos circuitos neurais dentro do cérebro vivo
A segunda metade do século 20, entretanto, trouxe novas técnicas
capazes de revelar não apenas o mapa dos circuitos neurais, mas seu
funcionamento dinâmico, dentro do cérebro vivo, no animal ou na própria
pessoa em plena ação. Foi possível registrar os sinais emitidos por
neurônios isolados, grupos de neurônios ou regiões inteiras do cérebro,
relacionados a funções corporais, comportamentos e até sensações, sentimentos e operações cognitivas.
O cérebro mutante
Resultou desse esforço de pesquisa uma nova concepção: o cérebro é
mutante, e não estático! Responde aos estímulos ambientais não apenas com operações funcionais imediatas, mas também com alterações de longa duração, algumas das quais podem se tornar permanentes. Emergiu o conceito de neuroplasticidade, que sintetiza essa capacidade dinâmica, mutante, transformadora.
A neuroplasticidade implica mudanças na transmissão de informações
entre os neurônios, tornando alguns mais ativos, outros menos, de acordo
com as necessidades impostas pelo ambiente externo e pelas próprias operações mentais.
Ao conversar com alguém, é
preciso que você mantenha na sua memória por algum tempo as frases que
emitiu e os assuntos que abordou. No dia seguinte, talvez isso não seja
tão necessário. Essa é a chamada memória operacional, de curta duração,
baseada apenas na persistência das informações nos circuitos neurais
durante minutos ou horas. Os informatas a chamariam de memória RAM do
cérebro.
O hardware cerebral se modifica com o treinamento e a aprendizado
Fenômenos neuroplásticos mais duradouros ocorrem com o treinamento e a aprendizagem. Nesses casos, os circuitos neurais envolvidos tornam-se fortes e permanentes. O hardware cerebral se modifica, com a emergência de novos circuitos entre os neurônios e o fortalecimento daqueles mais utilizados.
A informação obtida persistirá durante muito tempo, às vezes durante
toda uma vida. Quem não lembra até a morte o nome de sua mãe, a data do
seu aniversário, o primeiro beijo apaixonado, ou como andar de bicicleta e amarrar o sapato?
Neuroplasticidade e educação
Se o cérebro é plástico, mutável, como
poderíamos aplicar esse conceito na educação? Não é a educação a
prática social que objetiva mudar as pessoas, capacitá-las a realizar
tarefas e comportamentos, ensiná-las a executar operações mentais sofisticadas e complexas
e viver em sociedade segundo normas vantajosas para a coletividade?
Mudar as pessoas é mudar o seu cérebro. Sendo assim, existiria uma
ciência da educação? Neuroeducação? Em outras palavras: de que modo os
avanços da neurociência poderiam ser aplicados na educação?
Muitos neurocientistas trabalham para esclarecer e viabilizar essa
possibilidade, e já aparecem alguns resultados de pesquisa que nos
autorizam a pensar em mecanismos cerebrais específicos envolvidos com os diversos aspectos relevantes para a educação.
Resultados recentes sugerem que há mecanismos cerebrais específicos envolvidos com a aprendizagem
Há poucos meses, a Fundação Dana, uma organização privada norte-americana dedicada a apoiar a ciência, a saúde e a educação, com ênfase particular na neurociência, lançou o número de 2010 de Cerebrum, um livro anual que debate os avanços e perspectivas dessa disciplina. Nessa edição, sobressai uma interessante discussão com
vários especialistas sobre as relações entre as ciências do cérebro e a
educação. Dentre os resultados relatados e discutidos nesse livro, dois
me chamaram a atenção.
O primeiro refere-se ao processo conhecido como transferência próxima.
São experimentos realizados por um grupo de neurocientistas liderados
por Gottfried Schlaug e Krista Hyde, do Instituto de Neurologia de
Montreal, no Canadá, e da Universidade Harvard, nos Estados Unidos.
O grupo de pesquisadores acompanhou durante 15 meses crianças de 6 anos de idade sob treinamento musical, comparadas
a outras sem essa atividade. Mesmo nesse curto período foi possível
detectar alterações cerebrais estruturais nas regiões motoras envolvidas
com os instrumentos musicais
empregados (teclados), nas regiões auditivas e no circuito de
integração entre os dois hemisférios cerebrais.
A neuroplasticidade estrutural no cérebro de músicos adultos já havia sido demonstrada anteriormente,
mas persistia a dúvida sobre se o fenômeno era causado pelo treinamento
ou se esses indivíduos eram previamente dotados de maior volume
cortical nas regiões associadas ao processamento musical. No experimento
do grupo norte-americano, isso ficou esclarecido, pois o estudo comparou as imagens obtidas antes e depois de um treinamento musical de 15 meses.
O termo transferência próxima, utilizado acima, pode agora
ser entendido: refere-se ao efeito do treinamento sobre regiões
funcionais relacionadas à função aprendida. Nesse caso, as regiões
motoras e auditivas são obviamente relacionadas à aprendizagem musical.
O segundo grupo de resultados é mais impressionante, mas menos bem
documentado cientificamente. Aborda um processo mais sofisticado chamado
transferência distante. Aqui, a influência do treinamento (educação) se
dá sobre funções menos relacionadas (distantes).
O treinamento focalizado em música, dança ou teatro poderia fortalecer o sistema atencional do cérebro
Uma avaliação do estado-da-arte nesse aspecto da neuroplasticidade foi feita em Cerebrum 2010 por Michael Posner, professor emérito da Universidade de Oregon, e especialista nos mecanismos neurobiológicos da atenção.
O sistema em questão, neste caso, é o sistema atencional do cérebro,
por meio do qual somos capazes de focalizar nossas operações cognitivas
sobre um único alvo, e desse modo realizá-las de forma mais eficiente.
A ideia subjacente é que o treinamento focalizado em uma forma de
arte que atraia fortemente o interesse de uma criança – música, dança,
teatro – fortaleceria o sistema atencional do cérebro, repercutindo
positivamente na cognição em geral. Para aprender, é preciso prestar
atenção. E pode-se aprender a prestar atenção.
Efeito Mozart
Um primeiro experimento feito com essa perspectiva foi publicado em 1993 na revista Nature, e ficou conhecido como
“efeito Mozart”. Os autores do estudo sustentaram que estudantes
universitários expostos à música erudita por breves períodos de tempo
(Mozart, especialmente) melhoravam suas habilidades de raciocínio
espacial, também temporariamente. Os resultados causaram sensação, na
época, mas jamais foram reproduzidos por grupos independentes de
pesquisadores.
Mais recentemente, as tentativas de reproduzir esse efeito empregaram
tempos maiores de exposição e treinamento musical ativo. Neste caso,
alguns resultados mais animadores começaram
a aparecer. Em 2004, o grupo de E. Glenn Schellenberg, da Universidade
de Toronto (Canadá) relatou que crianças participantes de um programa de
treinamento musical durante um ano apresentavam um aumento do seu QI,
em comparação com crianças que não participaram do treinamento.
É verdade que o QI costuma ser criticado como medida comparativa
da inteligência. No entanto, no estudo em questão, o mesmo teste era
realizado longitudinalmente nas mesmas crianças, antes e depois do
treinamento.
A transferência distante ainda é um fenômeno mal demonstrado, e a
busca por demonstrá-lo atrai o interesse dos neurocientistas e
psicólogos, pela sua óbvia repercussão em educação.
Será que chegaremos algum dia a poder orientar os sistemas
educacionais segundo princípios científicos, mais do que segundo a nossa
intuição de pais e professores?
Fonte: Ciência Hoje | por Roberto Lent | Instituto de Ciências Biomédicas | Universidade Federal do Rio de Janeiro
Publicado em 30/04/2010
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Atualizado em 30/04/2010
Link: http://cienciahoje.uol.com.br/colunas/bilhoes-de-neuronios/a-educacao-muda-o-cerebro
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